Cícero

20 de março de 2015


Vou me casar com Cícero. De forma trágica, bela, finita, mágica e doce. Nosso amor terá a insustentável leveza do ser e existir, torturará minhas vísceras angustiadas para depois aliviá-las e deixar o sangue fluir com naturalidade. Ele não me amará facilmente. Preciso sofrer por Cícero, minha devoção precisa da dor. O céu precisa estar engarrafado, acinzentado, pesado de nuvens, num meio-dia gasto. Ele se vira para ir e o cinza do céu parece sobrepor com mais intensidade todo o verde das árvores e relva do parque. Eu aperto sua mão, suplicante e o faço voltar. Preciso estar vestida de laranja, um vestido bem rodado, um laranja que o lembre as faixas estampadas de um balão, que o faça querer voar comigo. “Fica”, eu vou pedir, “fica, fica, fica”, um coro de elementais do ar presentes no vento unem-se à minha súplica. “Fica, fica, fica”, minhas vísceras se ressecam, “fica, fica, fica, menino”. O que você quer de mim?, é o que ele diz. Não respondo com palavras, só com meus olhos, que são o que tenho de melhor. O que quero? Mais que esses olhos poeticamente caídos ou esses cachos castanhos, quero sua essência, quero absorvê-la até sê-la. Ouvir as batidas desse coração musical, até essa música ressoar em mim, que tenho sido uma caixa oca, e assim, talvez, eu mereça comentários angelicais a meu respeito. Sempre quis ser uma pessoa poética, você naturalmente o é. Vou roubar essa poesia de você, menino, vou estreitar esses dez anos até parecer que nascemos ao mesmo tempo e que os mesmos anjos nos coroaram.


As únicas coisas destacantes no parque: meu vestido, o verde da relva, vento incolor, o som dos silfos, seus olhos caídos. O resto é cinza. Até você dizer que fica. Ainda só com os olhos, digo: fique mesmo. E fique com meu coração também, porque ele me cansa. Pisco algumas vezes e deixo uma lágrima cair para você entender que não estou oferecendo meu coração, estou o obrigando a engolí-lo. A culpa é dele, que diz frases lindas como "vamos onde ventar, menina".


Dedilharemos um violão, degustaremos um disco de Tom, vou roubar suas camisetas de banda. Nos dias quentes farei um suco gelado de pitanga, quase anestésico. Ele entenderá o fato de que, para mim, cereja é mais que uma fruta, é uma sensação que estala entre os dentes, que faz a alma arder. Ele entenderá que, se eu pudesse, seria uma cereja. Farei questão de manter seu cabelo constantemente bagunçado, de chorar em sua presença, de andar descalça pela casa e de demolir meus excessivos muros. Incapaz de me apaixonar, declararei todos os dias: "Cícero, estou apaixonada por você." Se possível até soletrarei e quem me conheceu, desconfiará que eu nunca tive um trágico medo.


Gira mundo cão e o traga até mim, porque já passamos da sexta-feira. Não posso sobreviver a mais um domingo sem ele.


O vento leva as folhas, os confetes, os sonhos, as gotas d'água e os balões. Vamos nos casar num balão, eu e Cícero. Seremos os mais felizes noivos, os mais efêmeros noivos, testemunhas da nossa própria redenção e da nossa própria ruína. Meu vestido pode possuir qualquer preço, qualquer textura, só precisa esvoaçar. Quero quilos de tecido plainando para fora do balão. Enquanto Cícero consome de uma vez por todas meus olhos assustados com os seus caídos, alguém aqui em baixo verá o balão multicor que voa, o tecido branco flutuando longamente, e então entenderá que nunca poderá ser feliz. Porque não é Cícero, nem eu.


Ninguém é Cícero.








Foto: Divulgação

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